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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Da minha língua vê-se o mar


Se fosse vivo, o escritor Vergílio Ferreira faria hoje 97 anos. Nasceu a 28 de Janeiro de 1916, em Melo, concelho de Gouveia, na região da Serra da Estrela. 

«Da minha língua vê-se o mar» – disse ele durante o discurso que proferiu na cerimónia da entrega do Prémio Europália de Literatura, em Bruxelas, no Palácio das Academias, no dia 9 de Outubro de 1991. 

Vergílio Ferreira é um daqueles escritores de que se pode dizer que escreveu sempre o mesmo livro, excepto as primeiras obras, em que ele é ainda influenciado pelo neo-realismo. Essa influência do marxismo no neo-realismo, ele abandona-a e afasta-se também do Catolicismo ou, pelo menos, entra numa relação de conflito com Deus, como Torga. O ressentimento de que Deus não esteja lá, de que Deus esteja ausente. A sensação de solidão do ser humano num universo que não tem sentido, que perdeu o sentido. Por outro lado, uma espécie de grande desafio a Deus, tentando colocar-se no lugar dele, competindo com ele. 

Num desses momentos dramáticos de conflito com Deus, Vergílio Ferreira escreveu assim:

Deus
Precisava bem de ter uma conversa a sério contigo,
se tu não tivesses tido a cobardia de existires.
Mas safaste-te, não exististe e agora?
Para aqui sem te poder pedir satisfações
e atirar-te à cara com umas tantas questões urgentes
e algum cuspo que viesse atrás
Se tivesses um pouco de vergonha,
existias mesmo para aguentar com dignidade
o que todos temos para te dizer,
eu, particularmente.
Mas és assim, sem espinha dorsal
e cavaste para onde é o não ser.
Porque eu queria que me dissesses aqui sem tergiversares
para que é que fizeste esta merda.
E não me venhas com o palanfrório da eternidade e o mais
que não adianta.
Olha agora a gente a aturar os anjinhos e os seus alaúdes
como se isso não fosse mais chatice
do que a chatice que querias compensar.
Não, a coisa é mais séria,
A coisa é que me puseste aqui sem me dares cavaco
e eu que aguente.
A coisa é que és pior que os antigos senhores
com os seus caprichos que metiam sangue, torturas
e outros passatempos
de quem está farto e não sabe como distrair-se.
Estavas chateado?
Fizeste a criação por não teres que fazer?
Mas não vale a pena adiantar mais conversa.
És assim
um tipo invertebrado
sem um mínimo de vergonha,
e com tipos assim não gosto de conversar.
Se não és o cobarde que te digo na cara que és,
então existe mesmo, existe,
que depois sim, a gente vai ter a sério
uma conversa de homens como deve ser.
Até lá, metes-me náusea e não quero ouvir sequer falar
de ti,
sequer ouvir,
sequer ouvir.... 


Vergílio Ferreira, 20 de Janeiro de 1980, in Conta-Corrente 3

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