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sexta-feira, 1 de março de 2013

Resta-me agora o remorso...


O escritor Vergílio Ferreira partiu no dia 1 de Março de 1996. Há 17 anos, portanto. Para a sua última morada, o escritor quis que fosse em Melo, sua terra natal, para ficar virado para a Serra da Estrela como foi sempre seu desejo. 

Após a sua morte, passados 15 dias, foi publicado no jornal “Público” este artigo, da autoria de um escritor, ainda vivo, que nos fala da morte de Vergílio Ferreira. Alguém sabe dizer quem escreveu este texto? 

É-me muito penoso falar da situação de gelado desconforto, de quase dolorosa incomodidade, ao saber que Vergílio Ferreira abalou. Outro escritor falta, e dos grandes. Sei que estas alturas são azadas à grande frase, ou terna ou ataviada, a querer exprimir aquilo que se sabe não ser exprimível por frases, Não sou capaz. Sofro de inaptidão congénita para o sublime. 

Eu não era amigo de Vergílio Ferreira. Poucos acasos fizeram com que nos encontrássemos, sempre a furto, por aqui e por além, naquelas circunstâncias e cerimónias que determinam que, esporadicamente os escritores se encontrem. Desses contactos, nada me ficou. A ele, seguramente, menos que nada. Sabia que, da parte de Vergílio Ferreira havia uma forte animadversão (é maneira de dizer...) para com realidades, pessoas, artistas e instituições que, pela vida fora me habituei a respeitar e a amar, muito ao meu jeito. Leituras folheadas (ou contadas) de páginas da “Conta-Corrente” deixavam-me (deixam-me) entristecido, e, às vezes, revoltado. Em certos momentos, sabia que ele estava “do lado de lá”. Um grande escritor estava “do lado de lá”, o que obrigava sempre a reponderar “o lado de cá”. 

Quando a “Aparição” ganhou o Prémio Camilo Castelo Branco eu ainda frequentava o Liceu Camões. Recordo-me de como me orgulhei por ter o prémio sido atribuído a alguém que também andava pelos mesmos espaços, percorria os mesmos corredores e, por vezes, se cruzava connosco, grave, cabisbaixo e sombrio. Era o Professor de Português da outra turma. Os meus dezasseis anos cometeram ler a “Aparição” e ficaram fascinados pelo livro, se calhar por ingénuas e deslocadas (erradas?) razões. Eu podia dizer em casa que conhecia o Vergílio Ferreira, que respirava o mesmo ar, que, estando atento, lhe podia até ouvir a voz. E, perante pessoas que bem conheciam Évora, eu podia falar de uma outra Évora. Conservo o exemplar, dedicado a meu pai, em 12 de Agosto de 1959. “Cordialmente”. 

Os tempos que a seguir vieram foram-me muito convulsos e agitados. Creio que só há poucos anos deixaram de o ser. No início de sessenta, um jovem autor publica, aos vinte anos, um genial livro de estreia : Almeida Faria, “Rumor Branco”. Nada tinha que ver com os cânones do neo-realismo, então muito em voga no meio universitário, enunciados com uma simplificação própria de moços. Vergílio Ferreira, com generosidade, defendeu abertamente o livro, arrostando com marés adversas. Numa agitada série debates, sob o lema “As grandes correntes da Literatura Contemporânea”, organizados pela Associação de Estudantes do I.S.T, o confronto estala, a propósito do “papel” do escritor na intervenção social. 

Admite-se que um escritor “peça dispensa”?, foi um dos problemas que se levantou. Vergílio Ferreira era o visado. 

Eu e outros amigos meus estávamos divididos. Por um lado, entendíamos que a arte devia ser “empenhada”; por outro, admirávamos a obra de Vergílio Ferreira... Por um lado, preconizávamos a literatura “de conteúdo”; por outro, sabíamos de cor páginas inteiras do “Rumor Branco”... Por um lado, éramos militantes endurecidos e exigentes; por outro, gostávamos muito de literatura... Uma esquizofrenia muito difícil de gerir... Aliás, incurável. 

Quando, finalmente, muito depois, as bizarras revoluções do destino me fizeram escritor, fui enviando alguns dos meus livros a Vergílio Ferreira. Nunca esperei que os lesse. Era uma espécie de prestação de menagem e já me satisfaria que lhe ocupassem um lugar nas estantes, ao calor dos outros livros que ele consultava. Os tempos não estão para convivências, nem para amabilidades, nem para boas vontades. As pessoas afastam-se e, para não se rosnarem, ignoram-se. Se alguém estabelece um contacto, pensa logo no preço que terá de pagar por ele. Quem se mexe, arrisca-se, expõe-se. Aprendi isso amargamente, os gestos sub ou metainterpretados, a inadequação da inocência. Habituei-me a não esperar respostas. A desconfiar, sempre. A “desligar”. 

Surpreendentemente, de todas as vezes que enviei um livro a Vergílio Ferreira, recebi uma resposta, e amiga e circunstanciada. A mim, que mal o conhecia, e que não estava a contar com resposta nenhuma. Gente de outros tempos, pensei. Educação. Boa coisa. 

Da última vez não chegou um cartão. Veio uma carta. Opiniões amáveis, advertências, conselhos, rectificações de casos que eu narrei - porventura mal - em entrevistas já esquecidas, mas que ele havia lido e fixado. Letra infixa, irrequieta, difícil... O meu espanto e a minha gratidão. 

Essa carta merecia resposta. Fui deixando para o dia seguinte. Tinha de me sentir à altura. Um estúpido temor reverencial foi procrastinando o meu gesto. Resta-me agora o remorso... 

Jornal "PÚBLICO", Sábado, 16 de Março de 1996»

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