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terça-feira, 8 de abril de 2014

Mais vale estarmos sentados ao pé um do outro...

Ainda mais um poema em que há uma renúncia ao amor, “Vem Sentar-te Comigo, `Lídia, à Beira do Rio”, de Ricardo Reis. 

José Saramago admirava muito Fernando Pessoa e era um grande leitor da sua poesia. Porém, alguns poemas de Pessoa deixavam-no nervoso. E um deles era justamente este “Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio”. E ainda, sobretudo, o poema “Sábio é o que se contenta com o Espectáculo do Mundo”. 

Ricardo Reis é o poeta da contemplação. Fernando Pessoa depositou neste heterónimo o ideal de uma vida passiva e silenciosa, o amor ideal não realizado carnalmente. José Saramago, que discordava completamente desta atitude passiva, escreveu uma tese desafiando Pessoa. A tese é esse fantástico romance que é “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.

Neste poema, “Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio”, vemos uma renúncia ao envolvimento amoroso. Uma renúncia ao amor carnal, não um adeus, não um afastamento sem ressentimentos, como nos poemas de Eugénio de Andrade e de Rui Knopfli. Tão só um amar tranquilo. Desenlacemos as mãos, amemos tranquilamente. Assim, quando um morrer, o outro sofrerá menos. Basta-nos a contemplação de tudo quanto passa («mais vale estarmos sentados ao pé um do outro / Ouvindo correr o rio e vendo-o»).


Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis, in "Odes"

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