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sábado, 14 de março de 2015

Os pobres de Raul Brandão

Filho de pequenos proprietários, Raul Brandão nasceu no Porto, na Foz do Douro, em 1867. Ano fértil em escritores. No mesmo ano, nasceram outros dois grandes vultos da Língua Portuguesa: António Nobre e Camilo Pessanha. Raul Brandão morreu em Lisboa em 1930. 

Na Foz do Douro passou a sua adolescência e mocidade. Esta circunstância irá marcá-lo para sempre com a dupla presença do Mar e desses homens de um quotidiano humilde e trágico a que ainda estava ligado por laços familiares (filho e neto de homens do mar): «Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó Margarida esperou-o desde os vinte anos até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés, até aos cabelos brancos com que foi para o túmulo.», escreveu ele em “Os Pescadores”. O oceano e os homens do mar foram um tema recorrente da sua obra. 

A infância é evocada principalmente no livro “Memórias”, uma infância de que terá sempre saudade e donde emergem figuras como a do pai que morreu «amachucado, exausto e pobre» e da mãe «que se gastou a sonhar, só nervos e paixão».

Teve uma passagem pouco feliz pelo Colégio de S. Carlos, no Porto. No colégio entra em contacto com o «mundo atroz e brutal» da realidade. Talvez a partir daqui se possa começar a vislumbrar a dualidade entre o mundo claro e luminoso de “Os Pescadores” e as visões de pesadelo do mundo denso, sombrio, trágico e grotesco de obras como “Húmus”, “Os Pobres”, “A Farsa”…

Terminado o liceu, matriculou-se no Curso Superior de Letras e entrou em contacto com a juventude nortenha de ambiçães literárias, da qual faziam parte alguns amigos da sua adolescência, como António Nobre e Justino de Montalvão. Criou-se, então, o grupo iconoclasta que a si mesmo se denominou de «Os Insubmissos», tendo surgido uma revista, com este mesmo título, em 1889, quase em simultâneo com a revista “Boémia Nova”.

Em 1890, Raul Brandão fez a sua estreia literária com uma colectânea de contos naturalistas, intitulada ”Impressões e Paisagens”, onde relata cenas patéticas da vida dos marinheiros. Por essa altura, participou entusiastacamente em todos os movimentos de renovação literária, dirigindo com Júlio Brandão (não existe parentesco algum entre eles) e D. João de Castro a “Revista de Hoje”. Iniciou também, nesta altura, a sua actividade de jornalista no “Correio da Manhã”, que se prolongará por muitos anos. 

Em 1891, com 24 anos, Raul Brandão, o “literato insubmisso” matriculou-se na Escola do Exército, para seguir a carreira militar. Ele adorava a mãe, o que fez com que ele seguisse a carreira militar. Como disse Aquilino Ribeiro, a mãe «gostava de ver o seu menino fardado». Depois de dez meses de estágio na Escola Pratica de Infantaria de Mafra, foi promovido a alferes e colocado em Guimarães, onde conhece Maria Angelina, com quem casará. 

Mais tarde, foi transferido para Lisboa, e é então que surge o jovem escritor nefelibata preocupado com temas como Deus, a morte, o sentido da vida. Colaborou na composição do folheto “Nefelibatas”, em 1893, e aproveitou os escritos do “Correio da Manhã” para publicar em 1896 um livro “História de Um Palhaço”, obra que virá a ser refundida em 1926 e que passará a intitular-se “A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore”.

Em 1897, Raul Brandão casou-se com Maria Angelina. Um amor feliz, uma esposa que ele adorava. Nos últimos anos, ele ditava e ela escrevia. Viveu durante um ano em Guimarães, pedindo para ser transferido para o Porto, passando a viver na Foz do Douro. É nesta altura que escreve, em parceria com Júlio Brandão, a peça “Noite de Natal”, representada no Teatro D. Maria, em 1899.

Em 1901, Raul Brandão pediu de novo transferência para Lisboa. Dedicou-se ao jornalismo e entrou em contacto com os anarquistas. Um deles ter-lhe-á dito «se quer ser um escritor, fale dos pobres». Frase que ele parece nunca mais ter esquecido para o resto da sua vida.

Em 1903, Raul Brandão adquiriu a célebre Casa do Alto, perto de Guimarães. A sua vida irá repartir-se entre o recolhimento campestre desta casa com a produção jornalista e literária. 

Por volta de 1910, antes da implantação da República, sofre uma forte crìse de depressão nervosa, confessando mais tarde em “Memórias”, vol. I, de 1919: «Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida!» Começa a interessar-se pela História de Portugal e escreveu “El-Rei Junot” (1912) e “A Conspiração de Gomes Freire” (1914), onde podemos encontrar uma concepção trágica da História.

Porém, ele não gostava nada, mesmo nada, de ser militar. Foi alferes, tenente, capitão. Na tropa é “só fazer o servicinho”, escreveu ele. Ainda, nas suas próprias palavras: “no tempo em que fui tropa vivi sempre enrascado”. Apesar disso, foi-lhe possível manter, em paralelo, uma carreira de jornalista ( escrevia para o jornal “Correio da Manhã”), e publicar um extensa obra literária. Encontra-se colaboração da sua autoria no semanário "O Micróbio" (1894-1895) e nas revistas Brasil-Portugal (1899-1914) e Serões. 

Finalmente, em 1911, Raul Brandão reforma-se do exército, no posto de major.

Em 1917, publica aquele que é na opinião de muitos a sua mais bela obra - o romance "Húmus", um “romance moderno”, no dizer de José Régio.

A partir desta altura deixa de passar os invernos na Casa do Alto, começando a passá-los em Lisboa, convivendo com outros intelectuais. Com um grupo de inconformistas, Jaime Cortesão, Raul Proença, Aquilino Ribeiro e outros funda, em 1921, a revista “Seara Nova”.

É também por altura que se dedica ao seu velho sonho: o teatro.

Em 1923 publica “Teatro”, livro que contém “O Gebo e a Sombra”, “O Doido e a Morte” e “O Rei Imaginário”. A primeira foi representada em 1927 no Teatro Nacional e passou despercebida. “O Doido e a Morte” foi representada em 1926 no Teatro Politeama. 

O Gebo e a Sombra” foi recentemente adaptada ao cinema por Manoel de Oliveira, o que prova que se pode falar de uma forma contemporânea de um autor intemporal, injustamente esquecido.

Ern 1927 publica “Jesus Cristo em Lisboa", de colaboração com Teixeira de Pascoaes, escritor com quem Raul Brandão conviveu de perto (vide pp 405 de "A pedra ainda espera dar flor”).

Raul Brandão tinha em mente quatro livros de teatro, mas só um veio a ser publicado, tal como planeara escrever A História Humilde do Povo Português, como poderemos ler nas Memórias. “Os Pescadores” seria o primeiro volume dessa História, a que se seguiriam “Os Lavradores”, “Os Pastores” e “Os Operários”. Ligada a este plano deveria estar, por certo, a viagem aos Açores e à Madeira, em 1924, viagem que está na origem de “Ilhas Desconhecidas”, livro de 1926.

Escreveu ainda com a sua mulher, Maria Angelina, uma narrativa para crianças, “Portugal Pequenino”, editado em 1930, ano da sua morte, e dita um livro, publicado um ano depois, livro atormentado e quase autobiográfico, “O Pobre de Pedir”.

Olhando para a biografia de Raul Brandão parece poder afirmar-se que é uma personalidade contraditória: Para uma vida simples, uma obra literária complexa e densa. Foi um homem de imaginação febril, mas passivo. Como artista, foi um caso isolado, muitas vezes incompreendido no seu meio. 

Em “Balanço à Vida”, prefácio do terceiro volume de “Memórias”, espécie de autobiografia, Raul Brandão confessa justamente a contradição entre o pensar e o agir que toda a vida o atormentou: «Eu nunca pude pôr de acordo as minhas ideias com as minhas acções. Se pudesse, já há muito que estava na cadeia

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