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segunda-feira, 8 de junho de 2015

Miguel Torga e o consultório

Miguel Torga, há precisamente 23 anos. Dia difícil para o poeta. Quando acabam algumas coisas nas nossas vidas, nós morremos com elas.

«Coimbra, 8 de Junho de 1992 — Desfiz-me do consultório. Mil circunstâncias adversas conjugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus meu velho reduto, onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta. Ofereci o material cirúrgico ao hospital da Misericórdia em que durante anos operei, e o mobiliário à Junta de Freguesia de S. Martinho. E fiquei naquelas salas vazias vazio como elas. Sem passado, sem presente e sem futuro, com a minha própria vida abolida no tempo. A medida que os carregadores iam retirando o espólio, tinha a sensação de que estava a ser descarnado, a tornar-me humanamente espectral. No fim, estonteado, com o chão a fugir-me debaixo dos pés, sem um banco sequer para me sentar, ainda o telefone tocou. Do lado de lá do fio pediam-me que juntasse aos despojos a tabuleta. Respondi que sim, que ia ser arrancada e seguiria. E perguntei, de voz estrangulada, se queriam que mandasse também o meu cadáver.»

Miguel Torga, in Diário XVI

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