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segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A Entrevista Possível


Vinte e sete de Novembro de 1935, quarta-feira. Café Martinho da Arcada, em Lisboa. É quase noite. Fernando Pessoa, depois de um dia de trabalho, está sentado na mesa do costume. Aguarda os amigos Almada Negreiros e Gaspar Simões. Enquanto não chegam, avanço para a mesa e, saltando por cima dos cumprimentos que a ética manda, disparo a primeira pergunta:

O Sr. Pessoa escreveu tantas vezes sobre a morte, como gostaria de ver recordada a sua obra?
Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos – dizem-no vendo o que eu tenho já feito, não o que poderei fazer (senão eu não citava o que eles dizem…). Mas eu sei ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo cheire a podridão.


Ainda assim, escreveu muito sobre a morte…
A terra é feita de céu. A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu. Tudo é verdade e caminho.


Não chegou a responder-me: como vê a vida para lá da morte?
A morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto.


Considera-se um génio?
Génio? Neste momento cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, e a história não marcará, quem sabe?, nem um, nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicómios há malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 


Sei que tem uma grande admiração por Cesário Verde. Pensa o mesmo do poeta?
Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado de comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que sua, o cheiro da vaidade. O que ele sempre foi, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta. 


Pessoa mostra sinais de agitação. Pigarreia de vez em quando. No corpo pesam-lhe as dores de todas as angústias... 


Mora já, há alguns anos, no bairro de Campo de Ourique e trabalha em escritórios da Baixa de Lisboa. Sabendo que o Sr. Pessoa não tem viatura própria, que transporte público utiliza?
Vou num carro eléctrico e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim…Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. 


Pessoa foi baptizado na Igreja dos Mártires no dia 27 de Julho de 1888. Acredita em Deus?
Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo. E entraria pela porta dentro, dizendo-me, Aqui estou!...Mas se Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e luar, então acredito nele, acredito nele a toda a hora. E a minha vida é toda uma oração e uma missa. E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. 


Sendo frequentador habitual do Café Arcada do Martinho, no Terreiro do Paço, tem por hábito passear junto ao rio?
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.


Pessoa trabalhou em muitos escritórios na Baixa de Lisboa. Recorda algum patrão com simpatia?
O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro côa a saudade que hei-de ter então…Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório dos Douradores…Vejo de lá longe, como o vejo hoje de aqui mesmo – estrutura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias maradas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. 


Quando diz que o melhor do mundo são as crianças, pensa isso assim ou foi apenas para rimar com danças? 
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas porque deixou que a vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, porque deitaram ao lixo o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorara, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto.


O que diz agora é verdade ou está a fingir?
O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.


Quando revê a sua vida, reconhece-lhe os erros, as opiniões certas antes do tempo, consegue traçar a sua própria trajectória?
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 


Diga-me, Pessoa, sente saudades do seu tempo de infância?
Eu era feliz na casa antiga. Até eu fazer anos, era uma tradição de há séculos. Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma. De ser inteligente para entre a família. E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


E pode descrever essa casa antiga?
Vejo tudo outra vez com muita nitidez, que me cega. A mesa posta, com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos. O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado. As tias velhas, os primos diferentes, e tudo por minha causa! No tempo em que festejavam o dia dos meus anos! 


O seu namoro com Ophelia Queiroz acabou por ser um desencontro. Nunca levou esse namoro muito a sério. Pelo menos, é o que se conclui da leitura das cartas que escreveu a Ophelia.
Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas. Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.


Para além da Ophelia Queiroz, que até influenciou a sua escrita, não teve lá muitos amores, pois não? Porquê?
Nunca amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, e a nós mesmos – que amamos.


Bem, agora vou roubar uma frase ao Adolfo Casais Monteiro: Pessoa, conte lá essa história da génese dos heterónimos.
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.


Muito bem, e os outros?
Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase.


Estou a compreender tudo muito bem…
Aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.


E depois de Alberto Caeiro?
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.


E Bernardo Soares quando é que aparece?
O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.


Reparo que o Sr. Pessoa, ao longo desta entrevista, respondeu, muitas vezes, em nome dos seus heterónimos…
Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando me for dado o Prémio Nobel. Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente.Sou somente o lugar onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo… 


E sua relação com Miguel Torga? Parece que não foi muito feliz...
Recebi uma carta do Adolfo Rocha. A carta é de alguém que se ofendeu na quarta dimensão. Não é bem áspera, nem é propriamente insolente, mas intima-me a explicar a minha carta anterior, diz que a minha opinião é a mais desinteressante que ele recebeu a respeito do livro dele, explica, em diversos ângulos obtusos, que os intelectuais são ridículos e que a era dos Mestres já passou. Achei pois melhor não responder. Que diabo responderia? 


Podemos dizer que Mário Sá-Carneiro foi o seu maior amigo, mas morreu prematuramente. É assim?
Morre jovem o que os Deuses amam…Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida…Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida…Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor… Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim.


Tem algum mote que o acompanhe?
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.



Chegaram, entretanto, os amigos de Pessoa, Almada Negreiros e Gaspar Simões. Dou por terminada a entrevista, agradeço e saio. Afasto-me, mas fico, por perto, a observar aquela que será a última tertúlia de Pessoa com os amigos. 


Pessoa sai, cambaleia e ri de uma maneira estranha. Caminha na direcção da Rua dos Douradores, se calhar à procura, pela última vez, do rasto de Bernardo Soares...

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