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quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Um lúcio passeando pela brisa da tarde...


Início desconfiado, final surpreso. Estou a falar do romance “Um deus passeando pela brisa da tarde”, de Mário de Carvalho.

Embora o autor declare (com ironia?) que não se trata de um romance histórico, a verdade é que a narrativa está carregada de História. Arriscaria dizer que fictício só o nome da cidade onde tudo acontece. De facto, Tarcísis nunca existiu, embora o autor nos deixe leves pistas para podermos imaginar a sua localização (pp . 23 e 249).

A acção desenrola-se algures na região da Lusitânia, no sul da Hispânia, no sec. II d.c., no tempo em que era imperador Marco Aurélio (161-180).

Todavia, o tempo da escrita é posterior, quando Cómodo (180-192) já imperava já em Roma. O romance é contado na primeira pessoa pelo protagonista, Lúcio Valério Quíncio, que foi magistrado justamente em Tarcisis.

Lúcio Valério é romano, bom homem, agnóstico, exerce o cargo de magistrado (juridico e executivo) com elevado sentido de responsabilidade. Todavia, diverge do costume por se descurar na religiosidade e no gosto pelos artifícios de entretenimento da Roma Antiga. 

A sua principal atenção centra-se nas necessidades da cidade, preocupado, sobretudo, com as notícias de uma invasão bárbara iminente. Tal eventualidade obriga-o a tomar drásticas medidas e, com isso, entra em conflito com os seus concidadãos e membros da Cúria.

Entre mais ameaças encontra-se a “seita do peixe”, que não só põem em risco a romanidade em si, mas também o discernimento de Lúcio Valério, que, contra a sua vontade, fica irremediavelmente preso a Iunia Cantaber, membro destacado da dita “seita” .

Lúcio entra em conflito com os seus concidadãos e, pouco a pouco, todos o vão abandonando, até que, por imposição da Cúria, se afasta temporariamente da cidade. Até Aulo Mânlio, seu principal colaborador, se deixa seduzir pelo populismo de um tal Rufo Cardílio. Et tu, Aulo

Mais tarde, regressa à sua villa, e é então que resolve escrever sobre os acontecimentos que ocorreram em Tarcisis, durante a sua magistratura, não recusando, como ele diz no final do primeiro capítulo, “a intercessão de certo deus que, nos primórdios, ao que parece, passeava num jardim pela brisa da tarde…

A narrativa vale pela riqueza de pormenores acerca da vida quotidiana e da organização estrutural (política e social) de uma cidade romana. Os hábitos e os ideais, os códigos de conduta morais e as clivagens sociais são parte principal do romance. 

É uma história sobre o poder e aquilo de que ele depende, e, nisso, trata-se de uma obra intemporal. Decorre nos tempos romanos, mas poderia igualmente decorrer nos dias de hoje.

A linguagem é cuidada e altiva, sem ser arrogante. É uma viagem à língua portuguesa com inúmeros vocábulos da época. E, todavia, este não é um livro difícil de ler.

Sem aprofundar, um apontamento breve sobre o perfil psicológico das principais personagens da narrativa:

Lúcio é o personagem-narrador, já se disse. O retrato é ele que o faz nas primeiras linhas do livro. Senhor da terra, romano, culto, que marca os tempos com o seu porte, o seus gestos, as suas maneiras. Dignidade. Gravidade. Romanidade. Humanidade. Perdeu para os oportunistas, para os populistas, seus concidadãos, para os que não olham a meios para subir na vida. Resignou ao duunvirato por ter contra si os notáveis e o povo.

Mara é a mulher do magistrado Lúcio. Apresenta-se como uma grande mulher, pois apesar de saber da paixão do marido, nunca “abandonou o barco”, estando sempre lá para o ajudar. É a consciência do marido. Mara estava sempre à altura das situações.

Calpúrnio é o velho senador, representa o status quo, manhoso e intriguista.

Rufo Cardílio é um demagogo puro. O taberneiro que ambiciona ascender à liderança da cidade. Filho de um liberto, não lhe falta vontade para vencer a qualquer custo. E consegue. Ascendeu ao duunvirato, justamente ao lugar deixado por Lúcio! Para tanto ofereceu uma avultada fortuna à cidade e apressou-se a ordenar jogos em que a principal atracção foi o esquartejamento de Arsena (um salteador) por mastins da Caledónia. Justamente o que o povo mais gosta: circo!

Iunia Canturber é cristã, figura mais destacada da “seita do peixe”. A única pessoa perante quem Lúcio perde a compostura, numa paixão que tenta negar ao máximo, mas que lhe está na cara. A partir do meio do livro, comecei a anotar os adjectivos que Lúcio, o narrador e protagonista, utiliza para a descrever: decidida, seca, teimosa, inesperada, impertinente, provocatória, firme. O último adjectivo do livro é CORAJOSA. Contrariamente aos seus companheiros, foi a única que não renegou a sua fé. Enfrentou a condenação à morte sem vacilar.

Por último, a explicacão da minha surpresa pelo final do livro. É visível no livro a falta de liberdade da prática religiosa ocorrida na época. Nada de espantar, conhecendo nós o que foi a história dos primeiros mártires cristãos até ao ano de 325 d.c.. Nesta linha, não estava à espera que todos os cristãos que viviam na cidade de Tarcisis, à excepção de Iunia, apostatassem a sua fé. Confesso que fiquei surpreendido.

Que sinal o autor nos quis deixar? Penso que sei, mas são contas que não vale a pena aqui levantar. É um pormenor que não oblitera os méritos do livro. Vale a pena conhecer.

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