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domingo, 22 de abril de 2018

A lagoa de "O Delfim"

O Delfim” foi escrito no fim do salazarismo, em período de guerra colonial, retrata o universo da família Palma Bravo na Gafeira. Uma localidade provinciana, conservadora, características que poderiam ser atribuídas a parte da sociedade portuguesa de época. 

Para quem conheceu JCP, como FJV, o livro fala-nos sobre Portugal, sobre a sua noção de Portugal, sobre o provincionismo português, da pulhice portuguesa, da maldicência, da maldade, do lado abjecto de Portugal que ele criticava. Estamos assim perante um retrato cáustico de uma sociedade em que é possível encontrar homens como o engenheiro Tomás Palma Bravo (o Infante), profundamente machista, racista, e incapaz de aceitar qualquer mudança. Estamos na década de sessenta, um período de grandes alterações em Portugal e de dúvidas sobre o futuro de um regime político que dava todos os sinais de declínio. 

O narrador, papel desempenhado pelo escritor que visita a Gafeira, é uma figura central de “O Delfim”, pois por ele passa não só a recolha da informação sobre os acontecimentos funestos ali ocorridos como a sua interpretação. Num período em que a censura intervém de forma activa, Cardoso Pires não deixa de abordar temas tabu do Portugal da época, como a homossexualidade, a traição e até o incesto (para alguns). 

Pode-se dizer que "O Delfim", o livro, retrata um certo Portugal, que tem uma galeria quase ideal desses tipos, começando pelo próprio Delfim,o Infante, o Engenheiro, uma espécie de marialva. 


O Espaço 

O Delfim” situa a acção na Gafeira (nome com reminiscência de gafaria, terra de leprosos), uma terra imaginária a centena e meia de quilómetros de Lisboa, onde ocorrem duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade a um escritor amigo da família Palma Bravo. Perto da terra está a mítica Lagoa, que também não existe, assim descrita: 

«Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas de lei. Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses-operários, mede o universo» – 

É na lagoa que tudo começa e tudo termina. A Lagoa é, de certa forma, o centro de todo o romance. É a fronteira entre a opressão e a liberdade, «agora quem quiser caçar na lagoa já não precisa da autorização do Infante para nada» - 


O narrador 

É muito interessante, porque ele começa "O Delfim" com «Cá estou». E depois, logo a seguir, vem dizer «Já temos o autor instalado». Na opinião do escritor Mário de Carvalho, esta separação narrador/autor "põe desde logo o problema: quem é que está falar? O autor, o autor que vai proceder ao inquérito, que vai interrogando, vai anotando o que lhe é dito por várias personagens, mas, ao mesmo tempo, há também um narrador que aprecia o próprio comportamento do autor e que, além disso, faz vários comentários e que se dirige ao próprio leitor e que se dirige às próprias personagens e que as apostrofa, as afronta. Portanto de vez em quando, e às vezes no mesmo parágrafo, nós temos, digamos, todos estes níveis de intervenção da escrita do JCP exemplificados". 


O tempo

Há um tempo histórico. Para o historiador Fernando Rosas "são os anos da Revolução Cultural na China, o maoismo, tudo aquilo que aqui chegava como notícia disso, São os anos da Guerra do Vietnam que mobiliza as consciências aqui e do mundo inteiro e vão ser os anos da revolta estudantil em Itália, na Alemanha e, finalmente, em França, com o Maio de 68. São anos, do ponto de vista cultural, politico, social, de uma importância enorme que, ainda por cima, em Portugal se associam à morte política de Salazar." Estamos a falar do tempo de resistência ao salazarismo, dum Portugal cinzento, a preto e branco, mas mais cinzento que preto e branco, um Portugal muito oprimido, muito abafado, onde não se respira bem. 


O narrador regressa à Gafeira, a pretexto da caça, e começa a investigar um possível crime, enquanto recorda as conversas nascidas de uma amizade, nunca esclarecida, com o Delfim. Tomás Manuel da Palma Bravo e mulher, Maria das Mercês, o criado Domingos. Todos desapareceram envoltos em enigmas de nevoeiro e fumos que perpassam todo o romance e assombram sobretudo a lagoa, propriedade exclusiva de o Delfim. Engenheiro, princípe predestinado, cujo usufruto de abundâncias e privilégios chegou por fim aos habitantes da aldeia, agora que Tomás já não mora aqui. 

O narrador regressa à Gafeira no dia 31 de Outubro de 1967, ao início da tarde, justamente 365 dias depois de lá ter estado pela primeira vez. E aqui temos dois tempos de narração: um, com duração de menos de um dia, que vai do meio dia (mais ou menos) do último dia do mês de Outubro de 1967 até à alvorada do dia seguinte; o segundo, com a duração justamente do ano antecedente, em que ele relata factos ocorridos neste lapso de tempo, de que vai tendo notícia mas com versões distintas. "Sinto-me alvoroçado com este regresso à Gafeira. Um ano vivido assim, numa tarde, desorienta"



As Personagens 

O Delfim 

O Delfim, o nome, ou cognome, uma aparente contradição entre o próprio título, que é muito irónico, que é o Delfim, no sentido de príncipe, e, depois, é um príncipe que é um ser podre por dentro. Uma aparência radiosa por fora, mas a apodrecer por dentro. É o retrato de uma pessoa que é um país. 

É sem dúvida a figura principal do romance. O Delfim é uma espécie de latifundiário, parasita, o playboy, que tem o seu automóvel de marca e que é riquíssimo, que era de certo modo é o sustentáculo desse tipo de gente e de escória social rica, era de certo modo o sustentáculo do regime e dos que o Regime também apoiava, especialmente, enfim, mentendo os trabalhadores reprimidos. Curiosamente, o autor tem um fascínio especial e muito desprezo, simultâneamente, por mais contraditório que isto pareça. 


Maria da Mercês 

Embora esposa do Delfim, não se vê reconhecida no seu estatuto de parceira do prazer. Está só, enquanto o marido vagabundeia por bares e prostitutas. Este, o Engenheiro Tomás Manuel, tem uma ideia, diria original, sobre a sexualidade conjugal «tu sabes a razão por que nenhum homem deve fornicar a mulher legítima?». E acontece ainda que é sobre Maria das Mercês que recai o estigma de mulher maninha, de mulher inabitável. «Donde vem o mal que impede os frutos?». Não há provas, mas é ela que carrega essa punição pública. Acresce que ela vive intrigada pelas relações demasiado próximas entre o marido e o criado Domingos, «esse corpo intocável para todos excepto para o seu amo», essa estranha «aliança que a torturava». E ainda a atitude marialva do Delfim em relação às mulheres, «para a cabra e para a mulher, corda curta é que se quer». E, por fim, para complicar mais ainda esta trama, uma possível interpretação de grande cumplicidade entre a Maria das Mercês e o criado Domingos, que acaba num ralacionamento amoroso (aconteceu?), o que leva alguns analistas, como EPC, a falar de incesto! Como morreu Maria das Mercês? O narrador nada nos diz, deixa-nos com as várias versões que ouviu. 


Domingos 

É o criado dos Palma Bravo. Gastara a infância nos cais do Mindelo, «conduzindo marinheiros americanos com a sua voz branda e amável» diz-nos o autor de forma sibilina. O engenheiro reconstruiu-o «peça por peça, depois de o ter arrancado a uma guilhotina da fábrica, sem um braço». Uma disciplina rígida assente num lema: «vinho por medida, rédea curta e porrada na garoupa». Por sua vez, a patroa, a Maria das Mercês impunhava-lhe trabalhos escolares que ele no final do dia apresentava à mestra para correcção. Domingos acompanhava o patrão, o Engenheiro, nas investidas aos bares do Cais do Sodré, em Lisboa. Mas estas noitadas cansavam o mestiço. Regressava a casa destruído e humilhado. «Levo-o a Lisboa, deixo-o à vontade, dou-lhe dinheironada». Conta o Engenheiro à mulher. E num desabafo «Só me faltava esta, ter um criado…». Quem matou o Domingos? Como morreu o criado Domingos? 


Há ainda uma plêiade de personagens secundários, a que chamaria, com mais propriedade ,personagens-testemunhas (a estalajadeira, o cauteleiro, o padre novo, o batedor, o regedor,…) que são o porta-vozes das várias versões dos acontecimentos ocorridos no último ano, sobretudo as duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade de todos, em particular do nosso visitante escritor. Deliciosa esta síntese na boca do cauteleiro, que o escritor ouviu e registou naquela manhã que chegou a 1ª vez à aldeia: ”Lá vai ele, o engenheiro, Palma Bravo, o Infante, dono da Lagoa, o nosso Dono, com a gaja, o preto e o cão. Filho da Puta!». 


Censura 

A questão, ou a dúvida, que se coloca é: como pôde um romance, que é um retrato cáustico de uma sociedade anémica e de um regime em declínio, ser capaz de singrar quando, para a democracia, faltavam ainda anos e o 25 de Abril não passava de uma utopia? Certo que já não existia a censura prévia, mas, manter-se no mercado e receber os louvores da crírica estrangeira, ser reeditado! Para Fernando Rosas, « os censores também se enganavam, os censores eram homens militares, eram homens pouco cultos, eram burocratas da repressão, e, portanto, eles próprios, por vezes, avaliavam a perigosidade das obras em função do que era mais explícito e do que elas apelavam de uma forma mais directa e explicita, isso tornava-os culturalmente insensíveis a outras obras que, na realidade, representavam perigos para o Regime muito mais substanciais que eles, de imediato, não se apercebiam». 


Crime? Quem matou quem? 

O narrador, investido no mistério, ouve várias versões para o mesmo alegado crime. Maria, como virgem estéril, Maria das Mercês, à mercê do todo poderoso marido, foi encontrada morta. É praticamente a única certeza absoluta, encontrada morta na Lagoa. Agora como morreu, porque morreu, disso o autor, caçador, ouvirá as mais variadas teorias: do cauteleiro, da dona da pensão, do padre, do regedor, dos batedores, enfim…que a esposa do senhor matou o aleijado Domingos, por ciúmes da relação deste com o marido e se matou em seguida, que o engenheiro a apanhou na cama com o pobre criado e a ambos castigou com um fim prematuro, que isto, que aquilo, que sim, que não. 


Um romance policial? 

O livro é todo ele uma trama extremamente complexa, que, podemos dizer, JCP executou como no cinema, para além de haver uma sinopse, ideia geral e tudo o mais, se vai acompanhando, sequência a sequência, plano a plano, e depois na montagem que, realmente, o cinema aparece como cinema, como arte narrativa. Nesse aspecto, na opinião de Maria Lúcia Lepecki, professora e crítica literária, «O Delfim é um modelo que provavelmente não se conhece outro na literatura portuguesa, de montagem, neste caso romanesca, mas que tem grandes similitudes com a montagem cinematográfica. Este é um livro feito muito com montagens, vem narrando determinada sequência, passada num determinado lugar, numa determinada época, corta, na página até aparece um pedacinho em branco, e muda de assunto. É como no cinema, corta/cola, corta/cola. E a realidade vai-nos chegando muitifacetada como na realidade ela é» 


A escrita 

Acresce que JCP é um escritor, além de ser realista, é muito anglo-saxónico, escrita enxuta, como os ingleses e mais ainda como os americanos. 

Para Maria Lucia Lepecki, «Ele pega a Língua Portuguesa e trata-a com cuidados de ourives. É acusado, e parece, que ele escreve sem adjectivos? Dizer que ele escreve sem adjectivos, não é verdade, ele escreve com adjectivos como todo o mundo, o que acontece é que ele sabe onde os colocar, “escondidinhos” que até parece ao leitor não dar conta deles. Então a utilização da lingua portuguesa que ele faz é uma utilização subtil, discreta, muito clássica, muito contida, extremamente amorosa. Ele trata a LP como se fosse uma amante.». 


O Delfim fala-nos do futuro? 

De certo modo, JCP é premonitório, quase diria, porque há ali uma rutpura (tudo mudou na Gafeira), que acaba em festa, antecipando uns anos o advento da democracia. Mas, ao mesmo tempo, noto uma certa contradição na atitude final do narrador: por um lado, ele está contente, ele desiste da caça (principal motivo do seu regresso àquela terra) para se associar à festa dos camponeses-operários ("ao arraial não falto, custe o que custar"); por outro, parece estar anestesiado (espera o sono. O sono. Sono...).

(texto apresentado ao Grupo de Leitura da casa Roque Gameiro, Amadora, no dia 19 de Abril de 2018)

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